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A CRIAÇÃO DO MUNDO
15/10/2013 08:06Lenda do povo Araweté, habitante da região do rio Xingu (População em 2000: 270 pessoas).
Houve um tempo em que o mundo era sem morte e sem trabalho. Existiam na terra os índios e os Mais, uma tribo de imponentes homens-deuses. Não havia as roças nem o fogo; todos colhiam o mel e as frutas. Não se conheciam as doenças; a velhice e a morte não existiam. A floresta era amiga e os animais, dóceis. Durante as noites, os índios e os Mais fumavam grandes charutos, cantavam e dançavam; não se tinha inventado a mentira e a maldade; todos eram amigos, casavam-se entre si e viviam em harmonia.
O chefe Mai, Ananãmi, havia se casado com uma índia. Moravam felizes em uma aldeia ao lado de árvores cheias de frutos e cipós floridos.
Um dia, sem motivo nenhum, a mulher de Ananãmi discutiu com ele. Levantou a voz e, aos gritos, o insultou. O mundo todo parou surpreso. Aquilo jamais havia sido visto.
O grande chefe Mai percebeu então que o paraíso estava morto. Chamou seu sobrinho Hehede, pegou seu chocalho de pajé e começou a cantar e a fumar. Foram rodeados por toda a aldeia, que se espantou quando o solo de pedra, onde estavam os dois, começou a subir sem parar até desaparecer nas alturas. Foi assim que surgiu o céu.
Estava feita a confusão na terra.
Muitos Mais subiram com Ananãmi. O céu povoou-se de guerreiros divinos, que levaram o paraíso com eles. As melhores plantas, os melhores animais foram viver nas alturas. Alguns Mais subiram ainda mais alto, criando o céu vermelho que era o céu do céu.
Abandonada e perdendo seu suporte de pedras, a terra começou a se dissolver em água; jacarés e piranhas esfomeados saíram dos rios e devoraram os índios. Uma tribo Mai, que tinha ficado para trás, afundou n’água e entrou terra adentro. Passou a viver em grandes ilhas nos rios subterrâneos.
Os índios foram desaparecendo um a um. Os que não foram devorados acabaram por afogar-se. Só três pessoas escaparam. Dois homens e uma mulher, mais rápidos que os demais, subiram em um pé de bacaba e de lá assistiram ao desastre. Viriam a ser, depois, os pais de todos os índios.
Quando as águas desceram, a terra estava diferente. Aos poucos, povoou-se de animais ferozes; as árvores já não ofereciam tantas frutas; os sobreviventes tiveram que passar a pescar, caçar e plantar para viver. Ananãmi teve pena deles e mandou um pássaro vermelho para lhes ensinar a fazer fogo, plantar os roçados, construir canoas e remos fortes. Ensinou também os pajés sobre as ervas necessárias para curar e tratar a grande quantidade de doenças que surgiram e a enterrar os mortos.
A vida no céu era muito diferente da que se levava na terra. Lá as sementes brotavam sozinhas, as frutas e o mel estavam ao alcance da mão. Ananãmi levou o segredo da juventude, e não havia nada a fazer além de cantar, dançar e beber cauim. Os deuses eram bonitos e altos, o corpo pintado com tinta de jenipapo de um negro brilhante, e usavam maravilhosos cocares de penas de araras. Tudo era feito de pedra que não estraga com o tempo. E, se o tempo não se fazia sentir ao passar, então a vida deles era sempre presente e não existia futuro.
Na terra existia o tempo, o envelhecer, o esperar o dia de amanhã. O futuro. Na terra existia a esperança. Isso foi um presente de Ananãmi aos homens.
Vera do Val. O imaginário da floresta – lendas e histórias da Amazônia. Ilustrações de Luciano Tasso. Martins Fontes, 2007, p. 1-3.